A enfermeira paraquedista com a missão de ajudar a pátria
Maria Emília Pereira de Sousa tem 85 anos e foi enfermeira paraquedista na Guerra do Ultramar numa altura em que o cenário não se pintava com mulheres. Passou por situações complexas e marcantes, mas saiu da vida militar com um sentido de “missão cumprida” por ter feito “tudo o que podia” para ajudar as pessoas que estavam a dar a vida pela pátria.
Atualmente está reformada e vive há 27 anos em Souto, na Freguesia de Telões, no concelho de Vila Pouca de Aguiar, onde agora existem cerca de 84 casas e aproximadamente 35 fogos. Nasceu numa aldeia do concelho de Trancoso, no distrito da Guarda, e rumou a Castelo Branco para se licenciar em Enfermagem na Escola Superior de Enfermagem São João de Deus. Ainda dentro da licenciatura foi até Lisboa, ao Hospital de Santa Maria, para realizar o estágio de fim de curso. Já licenciada, em 1960 e com 20 anos, começou a exercer no Centro de Cirurgia Torácica da Zona Sul, atual Hospital Pulido Valente que, na altura, “era um sanatório de cirurgia para tuberculosos”, conta Maria Emília.
Como surgiu o paraquedismo
Em 1963 a enfermeira soube da
existência de um concurso para Enfermeiras Paraquedistas através de um anúncio
na televisão onde “pediam enfermeiras paraquedistas voluntárias para irem para
a guerra do Ultramar”. Aquando da pergunta sobre o que sentiu quando viu o
anúncio a resposta foi um imediato “gostava de ir!”. Após amadurecer a ideia,
inscreveu-se e posteriormente foi chamada, nesse mesmo ano, para ir para o
Aeródromo Militar de Tancos fazer instrução militar no Regimento de Caçadores
Paraquedistas.
Indica que inicialmente eram mais
de 40 enfermeiras a prestar provas físicas, como corrida ou saltos para lona, e
que não estava preparada. Afirmou que “não sabia para o que ia (…) nenhuma de
nós fez preparação”. É nesta altura que algumas das colegas são excluídas por
falta de condições físicas ficando apenas 18, sendo que houve também
desistências ao longo do tempo de curso porque “era muito duro”. Maria Emília
relembra as dores no corpo ao fim de oito dias de formação. Apenas seis
terminaram o curso no seu ano, entrando para o Corpo de Enfermeiras
Paraquedistas.
A instrução militar em
paraquedismo
Maria Emília esclarece que,
paralelamente à formação em paraquedismo, teve que fazer a instrução militar
como qualquer outro soldado que ia para a tropa, e sempre com instrutores
masculinos. A instrução teve uma duração de cerca de cinco meses após os quais
fez o seu primeiro salto de um avião. “Depois fiz mais cinco saltos para ter a
boina e o brevet [diploma de piloto de avião]”.
Maria Emília afirma que se sentiu
“muito bem” quando fez o seu primeiro salto, acrescentando ainda que “não é
fácil descrever por palavras aquilo que sente, é um misto de medo, prazer e
alívio quando se está no ar”. A sensação de alívio advém do sucesso da abertura
do paraquedas uma vez que “pode não abrir” relembra a enfermeira reformada. Não
obstante confirma que é “um misto de sensações, mas muito agradável”. Quanto
aos saltos seguintes, conta que já ia mais descontraída e confiante apesar de
que “nunca se vai muito à vontade, porque podem acontecer situações
desagradáveis e inesperadas”, frisando que a chegada ao solo é habitualmente
violenta e recordando que realizou 24 saltos no total.
Destacamento para a guerra
É então que é enviada para os
Açores, para o Hospital Militar, para fazer “uma espécie de estágio em Medicina
Aeronáutica” onde ficou por três meses, findos os quais foi para Angola. Apesar
do destino, a paraquedista militar afirma que estava “completamente tranquila”.
Por lá ficou durante nove meses, seis meses em Luanda a fazer evacuações onde
realizavam o transporte dos feridos de Luanda para Lisboa. Esteve ainda dois
meses no mato, no interior, em Negage, voltou para Luanda e seguiu depois para
a Guiné onde esteve mais um ano e dois meses.
“Era uma missão que eu tinha,
de ir ajudar aquelas pessoas que precisavam”
Quanto a emoções, Maria Emília
recorda a primeira sensação após pisar o solo em Luanda já que sentiu “muito
calor”, disse entre risos. Apesar de ir para uma zona de guerra, refere que os
tenros 23 anos de idade não lhe permitiam a consciência da situação porque,
acima de tudo, ia com um espírito de missão. “Era uma missão que eu tinha, de
ir ajudar aquelas pessoas que precisavam, os soldados, os militares que estavam
a dar a vida pela pátria, e eu queria fazer parte desse grupo que se
sacrificava pela pátria”.
Não refere medo, mas sim receio e
“preocupação para que as coisas corressem bem, que o paraquedas abrisse”.
As evacuações na prática
Nas evacuações normais, ia apenas
o piloto e uma enfermeira paraquedista nos chamados Dornier, nos
casos de grandes evacuações, já iria o piloto acompanhado de duas ou mais
enfermeiras num avião de maiores dimensões, os Dakota. A enfermeira
reformada explica que nunca saltaram em “teatro de guerra”, eram situações
programadas, e os militares colocavam no chão “lonas cor de laranja, bem
vistosas, em ‘T’, que se chamava balizagem, e o piloto sabia que podia dar
ordem para começar a saltar quando começasse a chegar àquela sinalização para
cairmos naquela zona”.
Em Luanda o objetivo era dar
apoio aos feridos que estavam no Hospital Militar e acompanhá-los de volta a
Lisboa. Uma vez que “os primeiros socorros já tinham sido realizados no
Hospital Militar em Luanda e, depois, juntavam uma quantidade de pessoas feridas
que precisavam de ir para Lisboa e marcavam um dia para a evacuação quando
houvesse avião. A enfermeira que estivesse de serviço é que os acompanhava nos
aviões, todos desmanchados por dentro, cheios de feridos, e nós lá íamos para
os ajudar, para os socorrer, para fazer aquilo que fosse preciso”.
Na Guiné, o cenário era diferente
já que as evacuações eram realizadas no mato. Estavam numa sede onde tinham
“uma base, um posto de socorros, onde estávamos com médicos e cada dia estava
uma ou duas de serviço ao mato, conforme as necessidades”. O processo
desencadeava-se com “uma chamada para a esquadra de pilotagem” que
posteriormente contactava o posto de socorro e a enfermeira de serviço era
destacada. Maria Emília esclarece que havia três categorias, “a tipo A, a tipo
B e a tipo Y, que eram as mais graves, as que precisavam de sangue, de soros,
de várias coisas, e nós tínhamos que ir preparadas e levar esse material (…)
porque precisavam de muitos cuidados, quer no helicóptero ou no avião e até nas
Companhias onde estávamos”.
Histórias que marcam em tempo
de guerra
“Guerra é guerra. Sabemos que a
guerra é uma coisa muito má, mas não estava preparada, houve coisas que me
chocaram muito”. A enfermeira paraquedista reformada conta-nos a história
destas duas fotografias que foram tiradas de noite, numa evacuação noturna algo
inédito até então na Guiné. “Sou eu e o piloto do helicóptero. Nesta malinha
[transportada pelo piloto] levávamos sangue, e estas trouxas que eu levo na mão
eram as bolsas que levávamos com os primeiros socorros”.
Diz ter sido uma evacuação
“marcante” pela data e pela gravidade da situação. “Essa evacuação noturna foi
feita numa noite de Natal, precisamente no dia 24 de dezembro”, já com a mesa
da consoada posta. “Foi a primeira evacuação noturna que se fez na Guiné” e
saíram pelas dez horas da noite. Desta forma, era “tudo novo, e onde aterrámos,
no aquartelamento, não havia pistas iluminadas (…) e nem podiam ser, porque se
iriam denunciar, pelo que a iluminação estava feita com tochas e com os faróis
dos jipes para dar luz à pista, para o piloto poder aterrar”.
A enfermeira paraquedista foi
acompanhada por uma colega, e explica que foi um ataque muito grande a um
quartel que não tinha comunicação a não ser pelo rio. Relata que houve muitos
feridos e que tiveram de ir de batelão pelo rio, de noite, e que a equipa de
socorro teve de ir ao seu encontro, no meio do capim, e com lanternas. Chegados
ao local, diz Maria Emília, “não foi agradável, foi doloroso porque vinham os
feridos e os mortos (…) e tínhamos que nos atirar e fazer aquilo que sabíamos
fazer”.
Quando regressaram à base, já o
dia raiava às seis horas da manhã, repararam que a mesa da consoada ainda
estava tal e qual a haviam deixado. Quase todos os militares estavam à espera
que chegasse o avião, “para nos felicitaram e para nos abraçarem” tal tinha
sido a complexidade da missão. Estiveram sempre em contacto via rádio, para
saberem das colegas que haviam respondido ao pedido de evacuação, mostrando
companheirismo e solidariedade em tempos de guerra.
Numa outra história, em relação à
chegada ao solo após um salto, a entrevistada conta uma situação em que ficou
com as emoções à flor da pele. “Apanhei um susto numa altura em que caí muito
perto de um barranco muito íngreme, felizmente não caí lá, fiquei na beirinha.
Porque o vento puxa, e nós lá em cima temos que fazer manobras, mas às vezes o
vento é tanto que nós não temos força suficiente para dominar o paraquedas. Foi
um susto porque caí muito perto de um precipício muito grande”.
“Sentia que tinha cumprido a
minha obrigação”
Ainda assim, apesar destas
experiências, quando terminava o dia, sentia o dever de missão cumprida.
“Sentia-me bem, tranquila e em paz, porque sentia que tinha cumprido a minha
obrigação, o melhor que eu pude, e sentia-me feliz porque tinha ajudado”.
É nesta altura que é referida a
vertente psicossocial que era inerente às enfermeiras paraquedistas, uma vez
que a figura feminina tinha outro peso num cenário de guerra. Muitas vezes
comparadas a “mães ou irmãs”, eram confidentes em situações graves ou que
envolvessem mortes.
Exemplo deste lado emocional é a
história “muito dramática” de um casal, casado há pouco mais de um mês, em que
a jovem esposa quis acompanhar o marido que havia sido destacado para a Guiné.
Sendo do posto de Comando, acabava por se lamentar por nunca ter ido para o
mato. Apesar de ser domingo, ser bastante religioso estar a preparar-se para ir
assistir à missa, surgiu uma oportunidade que aceitou e foi fazer uma
evacuação. Infelizmente, ao sair do avião, acabou por ser atingido por uma pá,
não sobreviveu e coube a Maria Emília fazer esta segunda evacuação. A esposa
pediu para falar com a enfermeira responsável pelo resgate e ainda não tinha
chorado a morte do companheiro. Foi então que, na presença da então enfermeira
paraquedista, se permitiu a chorar desalmadamente e a desabafar, por cerca de
uma hora. “Saí de lá arrasada, mas aliviada por a jovem esposa ter com quem
desabafar e achar que eu era a pessoa com quem ela tinha de chorar”.
Maria Emília clarifica que no
exercício da sua função, socorriam tanto “os nossos militares como os inimigos,
se fosse preciso e, mais do que uma vez, socorremos (…) porque estou ali para
ajudar e não para fazer guerra”.
“Os anjos que caem do céu”
Óscar Sousa, marido de Maria
Emília acrescenta ainda que as enfermeiras paraquedistas eram consideradas
pelos militares como “os anjos que caem do céu”. Para contextualizar indica que
“quando os militares estavam carecidos, achavam que eram os anjos que os vinham
ajudar e salvar. E em muitos casos foram, salvaram muitas vidas com os
primeiros socorros que prestavam”. Recorda ainda o risco que o Corpo de
Enfermeiras Paraquedista corria diariamente, com a esposa a ressaltar o caso de
duas colegas que faleceram, uma ao ser alvejada no avião em que se deslocava, e
a outra a ser atingida por uma pá do avião.
Maria Emília e Óscar
conheceram-se em 1963, quando a enfermeira estava a tirar o curso de
paraquedismo, seguindo posteriormente para as missões. Em tom de brincadeira,
conta que era uma situação contrária à habitual dos outros militares masculinos
“em que as namoradas iam despedir-se deles ao aeroporto e ali era ao contrário,
era o namorado que se ia despedir de mim ao aeroporto”.
“Ainda hoje tenho saudades
desse tempo”
Em janeiro de 1966 Maria Emília
regressa a Lisboa e retira-se da vida militar, com o objetivo de casar,
prosseguindo a vida profissional como enfermeira civil. Confessa que quando
saiu da vida militar “tinha muitas saudades, mas depois também havia a novidade
do casamento e da nova vida e isso compensava”.
Foi em agosto do mesmo ano que
casou com Óscar Sousa. Têm um casal de filhos e um neto. O filho quis seguir as
pisadas da mãe e fez o serviço militar no paraquedismo onde, devido ao legado
da mãe na área, tinha alguma pressão sobre o seu desempenho.
No fim, Maria Emília afirma que,
apesar de ter vivido a guerra mais de perto, teve uma sensação de
“tranquilidade” porque, remata, sente “que cumpri a minha missão e fiz o melhor
que pude”.
Ângela Vermelho
Fotos: Ângela Vermelho e Maria
Emília Sousa
03/06/2025
Sociedade
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